Instrumentos com histórias

Partilhamos o sentimento daqueles que dizem que um instrumento musical tem algo mais do que a capacidade de emitir som nas mãos de um tocador. Achamos que qualquer instrumento pode ser mesmo um parceiro fiel que vibra com o estado de espírito do seu tocador, dando-lhe voz de uma forma que este jamais conseguiria reproduzir sozinho. No caso de uma guitarra, esta relação passa inclusive para um domínio físico.

Quantos de nós, tocadores de guitarra, já adormecemos agarrados a uma?

Por entre as diversas pessoas que passam pela Porto Guitarra para comprar instrumentos, acessórios ou fazer uma reparação, vamos ouvindo relatos fantásticos sobre a história dos instrumentos que nos trazem. Embora fosse interessante, seria impossível reproduzir aqui todos esses relatos, até porque, nunca o conseguiríamos fazer com a mesma intensidade com que nos foram contados.

Pois bem, recentemente recebemos a visita de um cliente que fez um desses relatos num dos seus livros.

Gonçalo Cadilhe, escritor de viagens, trouxe-nos uma viola, para repararmos umas mazelas resultantes de uma grande viagem que juntos fizeram. A viola adquirida na Bolívia foi numa dessas viagens “a tal companheira”.

Melhor do que nós para contar, remetemo-vos para a crónica do Gonçalo Cadilhe que aqui transcrevemos na íntegra (com a autorização do autor).

Ah! Fiquem descansados, porque que a viola do Gonçalo, apesar das cicatrizes, está em excelente forma física e pronta para mais viagens.

BOLÍVIA: O LADO DE CÁ DA LUA (Por Gonçalo Cadilhe)

Ando há oito meses a viajar. Em La Paz, a solidão e abstinên­cia levam a melhor sobre os meus princípios. Tenho urgência de uma companheira, e vou pagar o que for necessário para a obter. Sei como a quero: de formas redondas, de toque suave, uma beleza clássica que responda ao estímulo do meus dedos como se eu e ela fôssemos um só corpo, uma só vibração.

Sigo as indicações do taxista e enfio-me nas ruelas sombrias atrás da velha igreja de San Francisco. Bato a várias portas até a en­contrar. Repito: é contra todos os meus princípios carregar com o que quer que seja que não seja estritamente essencial. Mas não resisto: com­pro uma lindíssima viola acústica, com jogo de nylon e braço estreito, uma Orosco, uma conhecida marca boliviana de instrumentos de cordas. Pago um terço do que poderia custar uma viola da mesma qualidade em Portugal. Compro também um casaco de lã, luvas, ceroulas, óculos de sol. Agora já tenho tudo o que me pode servir contra a luminosidade metálica e o frio absurdo do deserto de sal de Uyuni.

Oscilando entre três mil e quinhentos e cinco mil metros, as estradas que atravessam o Salar não conduzem a lado nenhum. Servem apenas para mostrar aos turistas uma das paisagens mais bonitas e deso­ladas do mundo. Na cidadezinha de Uyuni enfio-me num jipe com ou­tros dois curiosos deste infinito austral: Jeremy vem da Nova Zelândia, Joanna da Austrália. Conheceram-se há três anos num avião da índia para a Europa, e a sua história de amor segue sobrevoando pelos con­tinentes. Para juntar o dinheiro que estão agora a gastar, trabalharam duro doze meses em Londres. A viagem dos meus novos amigos irá terminar dentro de uns meses na Austrália. Talvez seja então tempo de casar e pensar em filhos.

Jeremy também viaja com urna viola. Esta noite teremos música. Por agora armazenamos inspiração com o que a vista alcança. Que consequências terá sobre as nossas sensibilidades musicais este pedaço de Lua caído na Terra? Para onde quer que olhe não encontro nada familiar, nada aconchegante, tudo está fora da medida humana, tudo é longínquo, pré-histórico, apocalíptico. Tudo é letal – os geysers incandescentes, as furnas borbulhantes, a salinidade da terra, a mineralização da água, o reflexo do Sol nos olhos, as queimaduras na pele, o vento gelado, a altitude. O jipe pára ao pé de um homem que não tem um único pedacinho de pele exposta. Todo o seu corpo está coberto de roupa. Parece um espantalho. Mas não há pássaros no céu, só raios ultravioleta em voo livre. O homem escava o sal da terra e recolhe-o em montinhos. Provo um pouco de sal. É apenas salgado, não tem outros sabores. Vêm-me as saudades do meu sal, o sal de mar que se cola à pele no fim de um dia de Verão e a ponta da língua descobre na curva da nuca, nos primeiros beijos da adolescência; que, por cima da batata cozida com um fio de azeite, me liga a milhares de anos de diálogo sensorial entre a minha gente e a terra que me viu nascer.

Paramos para dormir numa espécie de bunker ao lado da estrada, dividido em quartos com tarimbas. Um hotel. É a noite mais límpida e luminosa que eu já vi na minha vida. Não há Lua, só estrelas e silhuetas de montanhas na distância. Espreitamos de vez em quando o céu, mas está demasiado frio para estar fora. Na sala, saltam fora as afinidades musicais. Outros turistas juntam-se a nós. Um grupo de miúdas israelitas pede-nos «Imagine», a canção sobre um mundo sem países, nem religiões, um mundo em paz. Há muitos israelitas a viajar pela América do Sul — proporcionalmente à população de Israel, são o contingente mais numeroso de turistas. Sabe-se lá porquê. «Porque é barato», sugere a Joanna. «Porque em Buenos Aires há urna importante comunidade judia», acrescenta Jeremy. «Porque os países católicos sempre são mais tolerantes com a intolerância deles do que os países árabes», concluo eu.

As canções fluem no frio da noite, devem estar uns dez graus negativos ao relento. Cada um puxa do repertório — enquanto Jeremy pede um inundo sem países nem religiões, eu pergunto por notícias ao vento que passa. A trova portuguesa revela a minha nacionalidade, e é assim que a Cláudia Costa mete conversa comigo.

Cláudia é neta de um carismático agitador sindical, filha de um exilado político antifascista. A sua vida é um guia ilustrado da con-testação à injustiça estabelecida. Cláudia vive fora de Portugal desde 1985. Em Amesterdão, esteve dez anos envolvida com o movimento squatter, essas comunidades de jovens desmazelados rodeadas de ca-chorritos rafeiros, tocando flauta nas ruas pedonais, ocupando casas abandonadas, lutando por um mundo não globalizado. Em 1995, com vinte e cinco anos, mudou-se para a Universidade de Los Angeles, onde está a fazer um doutoramento em movimentos anarquistas modernos.

Cláudia pede-me que a acompanhe nas canções portuguesas que se lembra dos seus quinze anos. «Canta-me agora tu uma canção recente». Quer qualquer coisa de protesto, um texto social, um grito de alerta. «Não sei o que te cantar, Cláudia. As coisas mudaram, essas canções já não existem. Já ninguém escreve sobre “Os Pontos nos iis”, sobre a “Rosalinda”, sobre “Ser solidário”.»

Cláudia acha que estou a brincar com ela. Foi-se embora de Portugal em 1985, em plena maturidade critica e intervencionista dos Portugueses, no apogeu das batalhas, dos ideais, das opiniões, antes da fulminante decadência cívica, ética e moral dos anos do Cavaquismo, do Guterrismo, do novo-riquismo. «Estás a brincar comigo?» «Não, Cláudia, não estou. A sociedade já não se interessa, não quer saber, nem sequer há políticos que a mobilizem, já não há Cunhais, Soares, Sá-Carneiros, agora é tudo igual, tudo ao centro, Cláudia, há umas ideias engraçadas de um Bloco de Esquerda, mas que não têm nada a ver com os Portugueses, sabes, são ideias demasiado avançadas ou demasiado retrógradas e, de qualquer das formas, ninguém se interessa. Já não faz falta avisar a malta, Cláudia. A malta não quer ser avisada.»

Talvez daqui a vinte anos os nossos caminhos se cruzem outra vez, num outro deserto lunar da Terra. E quem sabe, Cláudia? Talvez haja de novo canções indignadas para cantar. Talvez finalmente o vento responda.

(in Planisfério Pessoal)

A  viola Orosco, na proa do Contship, algures entre o Panamá e a Nova Zelândia, no meio do grande Oceano Pacífico…

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